Yvonne Miller nasceu em 1985 na Alemanha, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017. Cronista e contista, tem textos publicados em várias antologias e é uma das organizadoras e coautoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Pela Aboio, publicou Deus criou primeiro um tatu – Crônicas da Mata (Aboio, 2022).
Muita gente tem medo quando vê o Chico pela primeira vez. “Tu viu o tamanho do cachorro? Parece uma montaria!”, foi o que ouvimos uma vez ao passearmos com ele, na época em que ainda morávamos na região da mata pernambucana. Ou, mais recentemente e já aqui em Fortaleza, andando com ele pelas ruas vazias e meio esquisitas do Papicu, numa tarde-quase-noite-de-domingo: “Cês podem ficar aí com esse cachorrão enquanto eu chego na Santos Dumont?”. Ficamos, claro, e acompanhamos com o olhar os passos aflitos da jovem, até ela pisar na avenida movimentada e melhor iluminada. Também minha enteada se utiliza do tamanho amedrontador da criatura quando se topa com um homem desconhecido numa esquina deserta: “Chico, já chega”, fala então com voz briguenta, segurando a guia com força e fingindo que mesmo assim mal consegue dominá-lo. “Você acabou de comer duas crianças, agora sossega”. E funciona, viu? Todos mudam de calçada, não escapa um.
Sendo assim, achamos muita ousadia quando, dia desses, apareceu uma meia porção de cachorrinho aqui na porta do apartamento para arrumar briga com Chico. Devo explicar que, para melhor circulação do vento, costumamos deixar todas as portas abertas – inclusive a da entrada. Colocamos uma daquelas gradezinhas de cachorro para que ele não saia, e pronto. Poderia arrombar o portãozinho? Nada mais fácil. Poderia pular por cima? Sem o menor problema. Mas ele não sabe e, aqui entre nós, acho que nem quer. Porque o que ele mais curte é ficar pertinho da gente. Só foge quando vê um secador de cabelo, mas essa é outra história.
Naquele dia, Chico estava pacificamente deitado no tapete da sala, desfrutando do cafuné que o vento fazia no seu pelo, quando ouvimos latidos raivosos vindos da escada. Fui olhar. E lá estava ele, uma miniatura de cachorro – ao menos em comparação com nossa montaria – latindo endiabradamente pelas grades do portãozinho. “Vem aqui, se tiver coragem”, parecia estar dizendo pro Chico. “Bora, macho, tô te esperando!”. Chico ergueu a cabeça. Durante alguns poucos instantes observou o visitante com um misto de surpresa e curiosidade, a língua caída pelo lado da boca. Depois voltou a pousar a cabeça no chão e fechou os olhos. “Ah, é?”, latiu o outro. “Tu vai me destratar assim? Então toma isso!” – levantou a pata e fez um xixizão bem na nossa porta.
Finalmente veio alguém. Um senhor baixo e calvo subia lentamente as escadas.
— Ah, é aqui que você tá! Marrapaz, tua mãe tá te procurando lá embaixo.
Nem um bom-dia pra gente.
— Tu subiu todos esses andares para arengar com esse cachorro? Tu não tem consciência do teu tamanho, não?
Nem um pedido de desculpas pelo transtorno.
— Ele fez xixi aqui — avisei.
O senhor olhou de relance para a poça amarela no chão, pegou seu diabinho e desceu as escadas com ele no colo. Ficamos esperando ele voltar para limpar o xixi. Não voltou.
Como não sou de brigar, peguei logo um pano, joguei água sanitária no chão e comecei os trabalhos de limpeza. Já a abordagem da Larissa é outra:
— Acho que já vi esse cachorro no segundo andar. Vou lá resolver essa parada — disse, resoluta.
Enquanto enxugava o chão, ouvi a conversa dela com o moço do 201:
— O Ziko? — Ele parecia incrédulo. — Mas o Ziko estava aqui o tempo todo.
— E não mora aqui um senhor baixo, calvo, de uns 60 anos?
— Não, só moramos minha esposa e eu… Ah, já sei! Deve ter sido o Coragem! Ele é meio parecido com Ziko mesmo.
— Coragem?
— É, sabe aquele cachorrinho do térreo que fica latindo pelas grades da janela pra todo mundo que passa na frente?
A descrição encaixou. O apelido também. Só coragem mesmo para arrumar briga com uma montaria dessas.
Fortaleza, junho de 2023
Desenho de Ariyoshi Kondo.